A importância de manter a calma

A importância de manter a calma

O Campeonato Mundial Júnior de Atletismo é um evento desportivo que funciona como uma espécie de triagem para novos atletas olímpicos. Só podem participar jovens que completam 18 ou 19 anos até dia 31 de dezembro do ano da competição, que acontece a cada dois anos desde que, em 1986, foi realizada a primeira edição em Atenas. O evento não tem a dimensão de uma Olimpíada, até porque é restrito a provas de atletismo, como a corrida em várias distâncias, saltos, arremessos e lançamentos, mas tem lá suas emoções.
O de 2012 foi realizado em Barcelona, cidade que havia sediado os jogos olímpicos 20 anos antes. Atualmente a capital da Catalunha é uma das cidades mais belas a aprazíveis da Europa e do mundo, e as Olimpíadas têm alguma coisa a ver com isso, como esperamos que aconteça com o Rio. Além disso foi lá que Dali, Miró e Gaudi deixaram marcas indeléveis da genialidade humana. A cidade que recebe os visitantes com a simpatia catalã passeando sem pressa pelas ramblas e servido o melhor da comida mediterrânea, tem um encanto só seu, inesquecível.
Mas, caro leitor, não se engane. Este artigo não é sobre esporte, muito menos sobre turismo. É sobre o ser humano, como de hábito. Mais precisamente, sobre um detalhe instigante de seu comportamento. Estou me referindo à maneira como as pessoas lidam com seus momentos de dificuldade, gravidade ou tensão. Lembra de algum assim em sua vida? Pois é, sabemos que a reação é muito particular e muito variada nessas ocasiões, e muitos estudiosos já gastaram fosfato para entender o que acontece em nossa cabeça quando o “bicho pega”.
Acontece que naquele meeting de atletismo houve um momento que chamou – e ainda chama – a atenção de muita gente (veja na Internet), e que tem a ver com esse assunto. Uma prova feminina de 200 metros com barreiras ganhou destaque especial, por um fato, digamos, inspirador, além de belo.
Nos instantes que precedem a prova, a tensão é grande, lógico.  Na largada, as atletas estão, como sempre, concentradas, tensas e fazendo movimentos musculares, rápidos, que têm a finalidade de aquecer e relaxar os músculos, além de acalmar os nervos. Pequenos saltos, balançar de braços, elevar e abaixar de ombros, giros de cabeça. Você já viu vários atletas fazendo isso. E todos estão, quase sempre, estampando no rosto uma expressão séria e tensa. Afinal, a responsabilidade é grande. Meses, às vezes anos, de treino serão testados naquela prova, que, a depender da modalidade, não dura mais do que alguns segundos.
Só que uma atleta australiana se destacava entre as demais. Sua expressão era diferente. O semblante da bela Michelle Jenneke era de tranquilidade e alegria, como se estivesse em uma festa, e não em uma prova mundial de atletismo. E não só a expressão facial, também a corporal. Seus movimentos de aquecimento lembravam uma dança, que alguns “acusaram” de ser sensual, bem diferente do ritmo cadenciado e compenetrado dos atletas que se alongam e se preparam para competir. Michelle parecia ouvir uma música alegre que embalava seus movimentos, e lhe fazia mexer as mãos de modo gracioso e os quadris ao estilo de uma passista de samba. Quando a prova finalmente começou, ela apenas parou de sorrir, mas seu semblante não foi substituído por nada que lembrasse tensão ou dor. Ela correu alegre.
 
Além da inteligência
O episódio da corredora australiana reacendeu a discussão. Qual o componente psicológico que faz com que algumas pessoas, no olho de um furacão mantenham a calma enquanto outros se desesperam? Será que esta é uma característica genética, própria, ou é algo que pode ser desenvolvido, treinado? A discussão prossegue, mas em um ponto todos coincidem: o de que é melhor manter a calma, pois o nervosismo embaralha as ideias e atrapalha as decisões. Quanto a isso não há dúvida.
Há quem diga que é uma questão de maturidade, algo que se conquista com a idade. Talvez. O poema If (Se),  do inglês Rudiard Kipling joga com essa possibilidade: “Se és capaz de manter a calma, quando todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa. De crer em ti quando estão todos duvidando e para esses no entanto achar uma desculpa… – és um homem, meu filho!”.
O inglês dizia entender do assunto, pois conheceu tanto a luz quanto a escuridão em sua vida. Nascido na Índia, foi feliz até os sete anos, quando foi mandado para a Inglaterra estudar, como era costume na época, e lá teve que amadurecer rápido para pode sobreviver emocionalmente, em um ambiente frio e distante de suas origens, apesar da língua lhe ser familiar.
Em sua biografia Kipling conta que conheceu a crueldade pelas mãos da Sra. Holloway, sua preceptora, justamente aquela que devia protege-lo. Lidar com a adversidade sem perder a fleuma foi sua arma, e, segundo conta, isso ajudou a revelar sua veia poética e literária. Seu O livro da selva, que conta as aventuras de Mowgli, o menino criado pelos lobos, tem alguma coisa a ver com sua própria história.
Falando em livros, nos final dos anos 1990, um livro de psicologia foi best-seller por muitos meses. Trata-se do Inteligência emocional, do pesquisador de Harvard, Daniel Goleman. Nele, o psicólogo explica que todos temos em nossa cabeça a chamada amigdala cortical, uma espécie de componente ancestral, anterior ao córtex, que é a parte pensante do cérebro. Sua função seria a interpretar o perigo e desencadear uma ação imediata de defesa. Até hoje, nós, seres evoluídos, ainda sofremos a influência de nossa amigdala cerebral. Diante do perigo, queremos fugir ou lutar. Só que, em nosso caso, o pensamento interfere, e propõe uma nova análise, afinal, dificilmente estaremos em perigo de vida. Já não vivemos na selva cheia de perigos.
Esse embate entre as reações instintivas e emocionais, e o cérebro pensante, é a grande questão explorada pelo livro. Ter inteligência emocional seria obter o equilíbrio entre os componentes cerebrais, diferentes em sua função e em sua idade evolutiva, porém todos essenciais à vida. Sabemos que a amigdala é importante também à vida afetiva das pessoas, mas, quando não integrada, provoca descontrole, fúria, explosões emocionais muitas vezes fatais.
Pessoas que tiveram suas amigdalas retiradas cirurgicamente passaram a ser calmas e passivas, mas perderam totalmente o interesse pelas outras pessoas e por uma vida afetiva. A anulação, portanto, não é o caminho. O ideal é o equilíbrio. E a busca do equilíbrio depende de aprendizado e de experiência. A vida afetiva e a vida intelectual são faces de uma mesma moeda que gira permanentemente e, vez ou outra, deita-se em um dos lados, alternando-se de modo equitativo. Nada mais normal, pois qualquer tendência exagerada, como em um dado viciado, infelicita a pessoa em si, e aqueles com quem ela convive.
 
Aqueles momentos
Quem não teve momentos em que o equilíbrio foi testado? Se você, como eu, viaja bastante, sofreu na pele os afeitos daquele apagão aéreo, ou pelo menos lembra das notícias. Uma paralização dos controladores de voo transformou uma simples viagem doméstica em uma aventura de proporções épicas, e serviu para alertas as autoridades sobre a fragilidade dos sistema. Para o país, prejuízo, para as pessoas, nervosismo, impaciência, desespero.
Aquele foi um período em que o equilíbrio emocional dos brasileiros foi posto à prova, e houve de tudo. Presenciei cada cena… Em uma ocasião, em que não só o voo estava atrasado há horas, mas não havia nenhum tipo de informação disponível, vi executivos indignados, famílias desesperadas, homens e mulheres gesticulando e gritando para um funcionário que havia virado um totem, ele mesmo totalmente impotente. Quando a situação parecia sair totalmente do controle, uma senhora elegante, de aparência frágil levantou-se, tomou a frente, virada para o grupo, de costas para o funcionário, e começou a falar, mantendo um sorriso nos lábios.
Vi a cena de longe. Não escutei o que ela disse. Mas o que se seguiu foi impressionante, pois as pessoas baixaram o tom, algumas balançavam a cabeça em sinal de concordância, e a bomba de uma possível violência foi sendo desarmada. Quando perguntei a um homem sobre o que havia acontecido, ele disse algo como: “Aquela senhora colocou juízo na cabeça das pessoas”.
De fato, a gritaria era inócua. Jamais alcançaria quem de fato poderia resolver a questão. Indignação não significa perda da razão, ao contrário. Se você pensar um pouco vai lembrar de tantas situações em que venceu o bom senso. E também de outras em que o nervosismo bloqueou a solução.
Não há nenhum tipo de problema, de situação desagradável ou difícil que possa ser resolvido por outro caminho que não a razão, que é filha legítima da serenidade. Ponto para Goleman, para Kipling e para a senhora elegante do aeroporto. E ponto para Machado de Assis, que dizia que o oposto da razão não é a emoção. Esta é complementar. O oposto da razão é sandice, dizia ele. E inaugurou o romance psicológico.
A propósito, a australiana Michelle Jenneke venceu a prova. Com facilidade.
 
Texto publicado sob licença da revista Vida Simples, Editora Abril. Todos os direitos reservados. Visite o site da revista: www.revistavidasimples.com.br