A Glória do cotidiano

A Glória do cotidiano

Campo de Ouriques é um bairro muito simpático de Lisboa. Residencial, calmo, seguro, tem também bom comércio, vida cultural e um mercado, onde se pode comprar peixes, frutas, verduras, pães, e também almoçar em uma espécie de praça de alimentação democrática, acessível, que respeita com rigor a verdadeira gastronomia portuguesa, aquela de comer ajoelhado. Este é um lugar que eu indico, pois faz parte da vida da cidade, frequentado pelos habitantes. Não se trata de um “sitio turístico”, como dizem os lisboetas.
Conheci o bairro atraído pela Casa Fernando Pessoa, que lá está. É um espaço cultural com biblioteca, auditório, sala de exposições, além de um pequeno museu dos pertences do poeta, incluindo seus chapéus, óculos, maquina de escrever e a cama onde dormiu nos últimos quinze anos de sua vida, quando lá morou, entre 1920 e 1935.
“A casa Fernando Pessoa é um espaço aberto a todos quantos aí queiram visitar, ouvir, ler, criar e, mais que tudo, sentir”,  diz a principal referência ao lugar. Eu fui lá, visitei, ouvi, li, senti, e acabei criando este texto.
Certamente o maior poeta português do século XX só não é apontado como “o maior de todos os tempos”, em respeito a tantos outros, principalmente a Luís de Camões. Ainda que o próprio Fernando tenha escrito, muito jovem, na revista A Águia, um texto em que ele intuía o aparecimento de um poeta ainda maior, um supra-Camões. Não, ele não estava falando dele mesmo, ou talvez estivesse, sem saber. Aquele texto lhe valeu uma torrente de críticas, afinal, quem poderia ser maior que Camões?
Curiosamente, Pessoa não se definia como poeta. Como havia vivido sua infância na África do Sul e falava inglês fluente, dedicou-se a ser tradutor, ou com ele gostava de definir, “correspondente estrangeiro em casas comerciais”. A poesia para ele, não era profissão, era vocação.
Pois foi na visita à casa de Fernando Pessoa, que eu li, talvez pela milésima vez, um poema que está entre meus preferidos, cujo título já é, em si, um poema: “Põe quanto és no mínimo que fazes”. Às vezes fico pensando porque esse poema de três versos rápidos me toca tanto. Em geral ele fala comigo quando me flagro fazendo algo pela metade, sem emprenho verdadeiro. Nesses momentos costumo pensar se vale a pena continuar fazendo.
Quando ele diz “Para ser grande, sê inteiro”, eu me sinto pequeno, e quando ele segue dizendo “Nada teu exagera ou exclui”, eu percebo que muitas vezes dedico apenas parte de mim a uma atividade, um trabalho, uma relação. E então critico minha conduta deplorável. Em geral consigo mudar minha atitude. Caso não consiga, trato de mudar a atividade.
Há tempos tenho observado que, não importa qual é a atividade, qual é o trabalho, algumas pessoas se colocam inteiras na tarefa, concentram-se, focam, dão o melhor de si e atingem resultados excepcionais, enquanto outras parecem estar pela metade, meio lá meio cá, e dão a impressão que mal acabaram de chegar e já estão indo embora. Você já viu alguém assim?
Depois de visitar a Casa Fernando Pessoa almocei no mercado de Ouriques e me detive a observar comportamentos. Havia um rapaz que cortava carne. Você pode imaginar trabalho mais banal que o de um açougueiro? Pois aquele não era um açougueiro comum. Aquela parecia ser sua profissão e também sua vocação. A maneira como ele segurava a peça a ser cortada, como ele descia a faca afiada sobre o produto, os movimentos de seus braços, a atenção do seu olhar, o sorriso ao entregar o filé para a cliente, que pagava também sorrindo e lhe agradecia, ao que ele respondia simplesmente “Pois pois, freguesa!”.
Aquele açougueiro lisboeta estava inteiro. Já seu colega, que compartilhava o exíguo espaço atrás do balcão, estava ali pela metade. A consequência evidente é que o trabalho do primeiro era muito melhor que o do segundo. Isso todos os fregueses percebiam. O que eu notei, porque estava interessado em ver algo mais naquela cena cotidiana, é que o que estava inteiro era, certamente, muito mais feliz que o outro.
O psicólogo tcheco radicado nos Estados Unidos Mihaily Csikszentmihalyi também observou isso, só de que maneira estruturada, acadêmica. Na busca por entender porque há pessoas que encontram felicidade no que fazem enquanto outras jamais descobrem o que é isso, ele primeiro analisou o comportamento de grandes artistas, músicos, atletas, e se deu conta que estes eram os que conseguiam um tal estado de atenção e inteireza que os levava a entrar temporariamente em um estado de suspensão do tempo e do espaço.
A este estado excepcional de inteireza, cujos resultados são, principalmente, a qualidade do trabalho e a felicidade de quem o realiza, Mihaily chamou de “estado de fluxo” (veja no TED). Estar em fluxo é criar uma conexão com a atividade tão intensa que o resultado é a perfeição possível. Esta seria a diferença entre um artesão e um artista.
Da investigação com artistas ele foi observar executivos de empresas, funcionários operacionais, profissionais de todos os tipos, além de donas de casa, estudantes, pessoas em atividades corriqueiras. O que o psicólogo checo constatou já havia sido descrito pelo poeta português. Há pessoas que se colocam inteiras porque vêm sentido no que fazem, sentem que estão contribuindo com o mundo e sentem prazer em fazer bem feito, não importa o que.
O oposto do estado de flow seria a apatia. O fazer por fazer, sem encontrar prazer, sem ver o sentido, sem obter um feed back positivo de si mesmo e, como consequência, dos demais. Muito se fala que quando trabalhamos em algo que amamos não sentimos que estamos trabalhando, não vemos o tempo passar. A grande contribuição do Dr. Csikszentmihalyi foi a de trazer o assunto para o nível da razão. Assim, se você não faz exatamente o que gosta, trate de gostar do que faz, como uma decisão consciente. O resultado será mais qualidade e muito mais felicidade. Uma espécie de “glória do cotidiano”. Afinal, com segue Pessoa em seu poema, “Em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive!”.
Texto publicado sob licença da revista Vida Simples, Editora Abril. Todos os direitos reservados. Visite o site da revista: www.revistavidasimples.com.br