A vitória de Sísifo

A vitória de Sísifo

A culpa de Sísifo foi o fato de ele pensar por conta própria. Sísifo é um herói grego que foi condenado pelos deuses por ter se rebelado contra eles e revelado seus segredos para os homens. E sua condenação foi aquela que mais sofrimento pode trazer a um homem que pensa: a realização de um trabalho sem sentido. Por toda a eternidade deveria Sísifo empurrar uma grande pedra redonda até o cume de uma montanha. Ao completar seu trabalho, ele veria a pedra simplesmente rolar ladeira abaixo por força da gravidade. E então ele deveria trazê-la de volta…
 
Esse mito representa o sentimento de muitos homens e mulheres modernos que, quando um novo ano começa, experimentam a sensação de estarem começando de novo algo que já foi feito. Há um sabor de déjà vu em nossa boca. Mal terminaram a festas de final de ano, que foram iguais às do ano anterior, já estamos olhando para frente e vendo outras, quem sabe o carnaval, a páscoa, a semana da pátria e, de repente, um novo natal. Até aí, tudo bem, mas também vemos o novo planejamento estratégico na empresa, as mesmas reuniões requentadas, a nova declaração de imposto de renda e, de novo a rotina do dia a dia. A pedra voltou ao pé da colina, ou uma nova colina surgiu mais à frente?
 
Várias interpretações foram dadas ao Mito de Sísifo, sendo a mais famosa a do filósofo existencialista francês Albert Camus (1913-1960), que chama o homem contemporâneo de “herói do absurdo”, pois o que ele mais faz é um trabalho que certamente terá que ser refeito. Nesse sentido, o homem é comparado a um animal de carga, com a diferença que este, por ser desprovido de consciência, não percebe a rotina, e por isso não sofre, nem se rebela. O ser humano teria, então, em sua consciência uma maldição, pois através dela, ele estaria colocado frente a frente com sua condição miserável.
 
Mas há outro lado. O belo, na história de Sísifo, é que ele continua fazendo seu trabalho, e este é o seu objetivo. Ao subir a ladeira, ele se confunde com a própria pedra, comunga com ela o destino de ascender, de não estancar em lugar algum. Ao rolar a pedra, o herói executa sua arte. A descida não lhe interessa, não depende dele, é natural e inexorável.
 
Sísifo poderia livrar-se do castigo, mas para isso teria que tornar-se inconsciente, ou talvez morrer. Mas ele ama esses dois companheiros: a vida e a consciência. Então continua, mesmo sem considerar a possibilidade de deixar lá em cima a pedra. Ou talvez por isso mesmo, pois o objetivo não é o de parar a pedra, pois ela representa sua arte. Se a pedra parar no cume, sua imobilidade será fatal a Sísifo e à sua competência de rolar a pedra para cima, graças à sua força, à sua capacidade e à sua vontade.
 
A maldição de Sísifo é o que o transformou no verdadeiro herói, como todos somos. Estamos agora começando um novo ano, uma nova pedra a ser rolada para chegar no mesmo lugar, isso já sabemos. Mas sabemos também, graças à nossa consciência – que não é nossa maldição, mas nossa salvação -, que a pedra, apesar de parecer a mesma, não é. E nem nós somos os mesmos, e nem a colina. Apenas a idéia é a mesma.
 
A idéia de continuar rolando a pedra para cima, sabendo que teremos que fazer isso de novo mais para frente. Nos assustamos com a menor possibilidade de a pedra parar, e ficarmos sem ter o que fazer. Deve haver sentido no trabalho, sempre. Quando parece não haver, o problema não está no trabalho em si, mas na consciência de quem o realiza. O único lugar onde pode morar a vitória de um moderno Sísifo é na percepção do significado de sua tarefa, o que quer dizer a importância, o valor e a beleza do trabalho, seja ele qual for. Encontre o significado, ou então mude de pedra, porque ladeiras, estas sempre existirão…
 
Texto publicado sob licença da revista Você s/a, Editora Abril.
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