Meu lado criativo

Meu lado criativo

Dois amigos se encontram em um happy hour. Paulo e Tarso. Um trabalha em uma agência de publicidade e outro em um escritório de contabilidade.
– Cara, estou muito feliz. Hoje meu chefe me elogiou e até acenou com uma promoção. Tudo porque eu tive uma ideia sensacional. Você sabe, atualmente ser criativo e inovador é muito importante para a empresa e para a carreira de cada um – contou Tarso.
– Concordo plenamente. Mas qual foi exatamente essa ideia brilhante, afinal? – perguntou Paulo.
– No fundo é simples. Desenvolvi um método que gera um índice confiável sobre a relação entre os lançamentos contábeis nas colunas de ativos e passivos quando a empresa faz captação de recursos através de debêntures. Sensacional!
– Puxa, você merecia um Leão em Cannes, amigo. Vamos brindar!
Ironia do publicitário Paulo a parte, o que esta historinha quer mostrar, é que ser criativo e colocar essa criatividade para encontrar novas ou melhores maneiras de fazer velhas coisas é importante para todos, inclusive para os contabilistas, como Tarso, cujo trabalho é tido por muitos como burocrático e repetitivo.
Para Paulo, ser criativo faz parte da profissão. Mas Tarso provou que a criatividade não é prerrogativa apenas dos publicitários ou de outros profissionais, das chamadas profissões criativas, como a dos artistas, designers e cineastas. Usar a criatividade, atualmente, está entre as qualidades profissionais mais valorizadas, pois este é o pré-requisito para a inovação, e, esta, para a evolução das empresas e da sociedade. Ser criativo e inovador está na moda. E, mais do que isso, ajuda a viver melhor.
Einstein dizia que “a criatividade é mais importante que a informação”. Ele ampliou os horizontes da física, sem dúvida, e fez isso imaginando novas possibilidades. Depois, claro, dedicou-se ao cálculos.  Coisa de gênio. Mas é importante que se diga: para ser criativo não é necessário ser gênio. Trata-se de uma condição humana natural, que pode ser ampliada e aprimorada.
Deduzindo isto, induzindo aquilo…
Há uma relação interessante entre inteligência e criatividade, a partir da definição de inteligência como um pensamento convergente e da criatividade como um pensamento divergente. De acordo com essa visão, a inteligência é uma qualidade que depende do uso da capacidade de raciocinar de modo convencional e objetivo para chegar às soluções corretas.
A inteligência converge ou concentra esforços para chegar a uma solução, usando o repertório de saberes e de raciocínios já existentes. A criatividade desconcentra, no sentido de dispersar o pensamento, abrindo um leque maior de opções para encontrar uma solução.
Colocado desta forma, até parece que inteligência e criatividade são coisas separadas, diferentes e excludentes, ou seja, parece que você tem uma ou outra. É claro que não é assim. As definições acima foram criadas para a melhor compreensão dos fenômenos mentais, mas na prática há uma profunda ligação. Um mesmo tema de nossa vida, pode estar sendo analisado através do pensamento convergente e do pensamento divergente ao mesmo tempo.
O processo dedutivo clássico é uma manifestação inequívoca de inteligência, e muitos dos chamados testes de QI baseiam-se nele. “São Paulo é um estado que pertence ao país Brasil, eu sou paulista, portanto sou brasileiro” é um exemplo extremamente simples de dedução.
A criatividade não é dedutiva. É indutiva. Enquanto a dedução parte de dados para chegar a conclusões, a indução parte da inquietude da falta de dados para chegar a soluções novas.
O detetive Sherlock Holmes, famoso personagem de Sir Arthur Conan Doyle, era um mestre da dedução. Usava o pensamento lógico e resolvia os intrincados crimes baseado na observação meticulosa e na dedução. Ele não era criativo e se orgulhava disso. Era dedutivo e pronto. Dizia que não tinha que criar uma nova realidade, apenas interpretar a realidade existente como ela é.
Já Robinson Crusoé, o náufrago do também britânico Daniel Defoe teve de ser criativo para continuar vivo, pois era o que lhe restava ser, isolado em uma ilha deserta. Ou era criativo ou morria.
Cada herói com sua qualidade. Apenas como curiosidade, Conan Doyle era médico e nunca abandonou a medicina, mesmo quando já era escritor famoso. Já Defoe foi de tudo – pastor, marinheiro, comerciante e até espião. Não é regra, mas nesses dois casos os personagens refletiram seus criadores.
Em ambos os casos, a criatividade foi um forte componente, pois os dois personagens resultaram da mente fértil de seus autores. Doyle teve que ser muito criativo para criar um personagem não criativo. E ambos foram construídos em torno de contextos ambientais complexos, do tipo que depende de uma análise cuidadosa e de uma interpretação pormenorizada.
Definitivamente, entre Holmes e Crusoé, fiquemos com os dois.
 
O potencial criativo
 
A criatividade deriva da falta de opções ou do descontentamento com as existentes. A criatividade desorganiza o mundo, pois cria novos caminhos, o que provoca uma subversão da estabilidade anterior. Esse é o motivo pelo qual os indivíduos criativos são às vezes incompreendidos, criticados e até perseguidos em alguns ambientes. Eles subvertem, portanto incomodam. Mas, se por um lado a criatividade incomoda, por outro é ela que provoca mudanças em direção à melhoria.
Criar é fazer o novo ou refazer o velho, diferente. É, portanto, sair de uma situação estável para outra, nova, passando por um período de instabilidade. Nossa condição de animais faz com que tenhamos um componente cerebral que nega o movimento em direção à novidade. Preferimos a estabilidade, que é bem mais confortável. E é justamente esse componente que cria para o homem moderno um paradoxo curioso: ele deseja ser criativo, pois é inquieto o mundo em que vivemos, mas teme a novidade, pois ela é insegura, por ser desconhecida.
Eis por que algumas pessoas são mais criativas do que outras. Depende do lado para o qual pende a balança, e isso está profundamente ligado à educação que recebemos, ou mesmo a aspectos mais sutis de nossa formação.
Mas é importante que se diga que todos nascemos com um potencial equivalente de criatividade (exceto os gênios, é claro, mas esses são exceções raras, portanto não contam), e é por obra da educação, principalmente na infância, que essa criatividade potencial será liberada, ganhando asas e ampliando seus limites. Ou, ao contrário, será aprisionada para sempre, permitindo, quando muito, pequenos espasmos criativos.
 
Não deixe morrer sua criança
Há duas características próprias da infância e da juventude que estão profundamente ligadas à questão criatividade: a curiosidade e a transgressão.
Todos nascemos curiosos, essa é a nossa natureza. E todos nascemos transgressores, no sentido bom da palavra, pois na infância temos uma imensa compulsão a mudar o que está ao nosso redor. O sentido da palavra transgressor, neste caso, não tem nada a ver com infringir leis e tornar-se marginal, e sim tem a ver com vontade de fazer diferente do que os outros fazem. Portanto, sendo curiosos para entender o mundo, e predispostos a rearranjá-lo, somos criativos por natureza.
Pois é. Mas aí entra em ação o modelo educacional que nos formou. Aquele modelo que sempre foi muito mais parecido com um programa de treinamento, em que a finalidade principal era a de passar um conjunto de informações, chamado “conteúdo programático”, que depois seria cobrado na prova. Fomos educados, na maioria, para aprender aquilo que os professores sabiam. E tínhamos de ficar quietos em nossas carteiras por horas, todos os dias, aprisionando um impulso natural de querer conhecer o “mundo real”, e não o texto do livro.
Preferiríamos saber o que ia cair na vida e não o que ia cair na prova – só que não sabíamos isso. Ficar quieto e não fazer muitas perguntas era a receita do aluno aplicado, educado, bonzinho, que em geral ia bem nas provas e era elogiado pelos professores. Os inquietos, curiosos, irreverentes, transgressores, eram penalizados, inclusive com reprovações.
O modelo educacional que nos formou, com poucas exceções, teve o demérito de bloquear nossa criatividade, na razão direta em que não atendeu aos dois anseios infantis mais saudáveis: o desejo de entender o mundo através do exercício da curiosidade, e o desejo de mudar o mundo através da transgressão construtiva.
E agora, adultos, conscientes e responsáveis, temos duas opções. A primeira é a de nos conformar com essa situação, não tentar mudar nada e ainda dizer algo do tipo: “Eu sou assim porque foi assim que me fizeram”. Essa atitude é a do conformismo definitivo, a de achar que não podemos mudar para melhor, a não ser através de um esforço grande demais, quase desumano. Essa é uma atitude dos deterministas, aqueles que têm certeza de que o nosso destino está selado e pronto, e que pouco podemos fazer para mudar “o que está escrito”.
A segunda é a atitude dos que, através do aumento de consciência, resolvem recuperar o tempo perdido e então se colocam em ação para mudar tudo. Começando pelo princípio, pela recuperação de suas duas qualidades inatas, roubadas por um tempo: a curiosidade e a transgressão, ou seja, a criatividade. Não podemos, definitivamente, deixar morrer a criança que habita em nós.
Texto publicado sob licença da revista Vida Simples, Editora Abril. Todos os direitos reservados. Visite o site da revista: www.revistavidasimples.com.br