Sobre didática

Sobre didática

– Era isso… Alguma dúvida?
Após pouco mais de uma hora explorando e explanando – ou pelo menos tentando – o Potencial de Ação, um fenômeno bioquímico básico para o entendimento da função celular, o professor, que até agora não tinha se virado para a sala de aula, dá sua missão por encerrada, mas tem a gentileza de se colocar à disposição para atender às dúvidas dos alunos. Entre ele, este que vos escreve.
Era o início do curso médico, havia muitas novidades, claro, mas todos tínhamos ótimos conhecimentos de física, química e biologia, sem os quais ninguém teria passado no vestibular. Falar de íons, membrana celular, correntes elétricas, não chegava a ser um desafio instransponível. O tal Potencial de Membrana, uma inversão quase instantânea da polarização elétrica da membrana da célula, que assim faz uma informação seguir pelo tecido, não era, propriamente, impossível de se compreender. Entretanto, aquele professor conseguiu tal proeza.
– Eu tenho uma dúvida! – disse um colega, levantando a mão, após alguns instantes, antes que o burburinho na sala tornasse a pergunta inaudível.
– Pois não, pode perguntar – acrescentou o professor, gentil.
– Bem, minha dúvida não é exatamente sobre o Potencial da Membrana. É sobre o potencial da didática. Eu simplesmente não consegui entender nada do que o senhor explicou.
O que se seguiu foi uma cena cômica, pois, enquanto os alunos elevaram o tom das falas, quase todas em apoio ao colega corajoso, o professor olhava para ele como se, agora, ele não tivesse entendido. E, provavelmente, era verdade. Ele não conseguia entender como os alunos não conseguiam entender o que ele tinha acabado de explicar.
O tema, agora, não seria mais biologia, bioquímica ou fisiologia. O novo assunto era a arte de ensinar, a habilidade tão fundamental ao professor quanto o domínio do conteúdo. Ninguém duvidava que aquele professor-doutor, graduado e titulado, autor de pesquisas e textos científicos, não conhecesse profundamente a matéria. Aliás, aquela aula em particular tratava de um tópico extremamente básico. Um verdadeiro bê-á-bá. O problema não era esse.
O problema é que o professor não tinha a menor didática. Ele conseguia complicar, não tinha nenhum êxito ao tentar prender a atenção dos alunos, muito menos gerar interesse pela disciplina. Você, por acaso, lembra de algo semelhante em sua vida acadêmica? Provavelmente sim…
Como, apesar de ter concluído o curso médico, dediquei minha vida ao magistério, este foi um assunto que sempre me interessou. E ainda interessa. Com frequência falo para professores, em congressos, para os quais sou convidado, provavelmente, graças às cerca de 20 mil aulas presenciais que constam em meu currículo de professor. Meus colegas mais jovens adoram ouvir as historias de sala-de-aula de alguém que já viveu tanto. Como prender a atenção do aluno? Como lidar com indisciplina? Como gerar interesse?
Estes são apenas alguns dos temas recorrentes nesses encontros. No entanto, acho que há pré-requisitos a esses assuntos. Acima de tudo tem uma coisa chamada amor por ensinar. E isso está ligado com a vocação, com ouvir a voz que chama para aquele trabalho, aquela carreira. De todas as profissões, a de professor é uma das mais vocação-dependentes.
Sabemos quando temos vocação para um trabalho, quando aprendemos com facilidade seus mistérios, quando executamos com eficiência as tarefas, e, principalmente, quando somos felizes fazendo o que fazemos. No caso, a alegria de ensinar é parte da didática. O aluno percebe.
Dar uma aula não é definitivamente, apenas passar conteúdos. É ensinar a pensar e ajudar a construir o conhecimento. O professor passa as informações, e cada aluno vai construir seu próprio conhecimento a partir delas, valendo-se de seu próprio repertório de conhecimentos e experiências anteriores. E isso é algo a ser respeitado.
A informação é fundamental, mas ela tem que ser acompanhada por três elementos. Primeiro, o significado, que vem a ser a percepção, por parte do aluno, da utilidade do assunto. Educação é um fenômeno social, em que alguém chamado professor compartilha significados com alguém chamado aluno. Se o significado for apenas o fato de que aquele assunto vai cair na prova, a educação está, definitivamente, falhando.
Segundo, a criação de um elo afetivo. Sim, afetivo. Algo que toque as emoções, que são a verdadeira porta para o aprender. Se o aprendizado é um fenômeno intelectual, a aprendizagem é um fenômeno emocional. O aprendizado é o produto, a aprendizagem é o processo. A emoção pode ser o afeto em si, que é celebrado quando o professor demonstra que ele ama o que ensina, e que ama ensinar. Pode ser o humor, o suspense, a curiosidade, o medo, qualquer uma das milhares de cores que compõem a paleta das emoções, nossa verdadeira essência.
E, por último, a didática em si, quando entendida com sendo a capacidade de simplificar a complexidade. E isso se faz com encadeamento lógico, exemplos claros, conexões apropriadas, vocabulário adequado, e, claro, simplicidade.
Há quem diga que o professor não tem que, necessariamente, simplificar a vida do aluno. Que ele deve até complica-la, para estimular o próprio aluno a encontrar a saída, o entendimento, a luz. Pode ser, sim, que essa seja a didática adotada pelo professor. Mas até isso tem que ficar claro para o aluno, e, neste caso, estamos falando de alunos dotados de um grau de maturidade apropriado, como os dos cursos de pós-graduação. Na sala-de-aula, por favor, professor, faça como na vida, simplifique.
Sócrates, provavelmente o primeiro grande educador, gostava de usar a expressão grega (claro…) maiêutica, que significa, literalmente, “dar à luz”, ou seja, ajudar a nascer. Como sua mãe era parteira, Sócrates comparava o trabalho dela com a de um professor. A parteira não faz o parto. O obstetra não pare. Quem pare é a mãe, o próprio filho, a natureza em si. O profissional apoia, orienta, ajuda, atua nas intercorrências, mas o parto em si, acontece naturalmente.
Essa era a visão do grego com relação à educação. A criança, e também o adulto, aprendem naturalmente, pois isso faz parte de nossa natureza humana. Ao mestre cabe facilitar o processo. Dar à luz o conhecimento, e assim, acender a luz da inteligência, da autonomia, e do futuro. Com simplicidade.
Eugenio Mussak escreve todos os meses para Vida Simples, e já simplificou aqui muitos temas complexos, mas nunca tinha falado sobre Potencial de Membrana.